Fui selecionado para participar do UB515 e a Lúcia (Telles) narra o acontecido.

 

– Somos uma família, o espírito é todo esse. A graça dessa jornada está nesse sentimento de união, fraternidade, confraternização. O percurso não é fácil, são inúmeros obstáculos, dias e noites suplicando por dedicação extrema. Somos simples, sem glamour, sem luxo, pouca infraestrutura. O espírito dessa jornada está também nessa entrega.

Dois sotaques cariocas na linha, no Estado ali ao lado. Olho pra mesa, pras pequenas câmeras no aparelho celular, pros rostos deles que já vi na imprensa, na internet… Aceno com a cabeça para cima e para baixo em cada uma dessas ponderações.

– Sim, eu sei, acho que entendi esse espírito da jornada.

Aceno com a cabeça e com o coração, sim, eu sei e eu quero, quero demais viver isso.

– Os tempos são esses, os dias serão esses, a data já está fechada, o patrocinador ainda não, o trabalho de preparação será este, aquele. Estaremos por perto, ligando, perguntando, querendo saber de você, até o final.

– Bom saber desse acompanhamento, sentir-se cuidado, amparado…

Ao meu lado a janela exibindo a noite já escura, nove horas. E penso em todas as noites que seguirei levantando para ir para o embate. Minha voz falha um pouco.

Uma a uma, cada etapa começa a ser esmiuçada, desfiada, e com essa linha enorme refaço todo o percurso até aqui. Subo à superfície e respiro.

– A água no primeiro dia amedronta muita gente, podemos ver no seu currículo que você tem familiaridade, é nadador, estará no seu ambiente confortável.

– Sempre gostei mais da água, nado desde bebê, eu tinha asma, a natação me curou.

Perco o ar, logo acho de novo. Volta em mim o garoto teimoso que disputou gota a gota de inúmeras piscinas. O mar, as toucas, a roupa de borracha assando o pescoço, o zíper fechando nas costas com meu nome e telefone, a saída tumultuada para o mar, sempre um pé na frente e já outro atrás pronto pra te atropelar, a saída pé na areia, as provas da infância. Refaço todo esse caminho rapidamente. Falam do meu currículo, uma sequência de experiências aquáticas, as primeiras experiências esportivas, com esse espírito da competição, mas mais que isso, com essa relação profunda com o esporte que trago em mim. Penso que de caldo não morrerei na praia… E, então, lembro do mar que conheço, do litoral que frequento há muitos anos, águas já sabidas por mim.

Volto às câmeras, eles lá, já falando da longa jornada do ciclismo.

– Todo o percurso numa estrada muito bonita, cercada de Mata Atlântica – Ubatuba, Paraty –, numa estrada sem muita infraestrutura, não teremos médicos ou ambulâncias, mas indicamos todos os centros de saúde e hospitais que estão por perto.

O vácuo, as rodas abertas – não vale fechada –, o cuidado com o carro de apoio, atrás, nunca ao lado, o trânsito que segue sua rota, como se nada estivesse acontecendo, e o power meter me dizendo quem são minhas pernas. Sigo ouvindo.

– Sim, eu quero, eu vou!

– Seu currículo mostra uma preferência por esportes de resistência e força, e não velocidade. Você está no lugar certo.

– Que bom ouvir isso, também acho, estou no lugar certo, estou, sim.

Vou me animando e sendo tomado por uma explosão de ansiedade, o corpo meio adormecido com a chegada da boa notícia, como esperei essa ligação…

Para ouvir falar da corrida me ajeito na cadeira e penso em minha última experiência: um recorde pessoal, uma maratona com tempo excelente, mas só a metade do que terei por lá. Sinto uma certeza de que posso fazer, sim, duas vezes aquilo.

– Ao final da corrida temos a linha de chegada que pode ser um pórtico construído ou uma linha pintada no chão, para nós as duas possibilidades existem e têm o mesmo significado, ainda não fechamos os patrocínios.

Linha pintada no chão fica na minha cabeça, logo lembro das provas de triatlon antigas que já vi e que eram assim, entendo melhor esse espírito simples e clássico a que eles tanto se referem, me nutro completamente dessa energia.

– Sua família precisa estar muito perto, sua esposa, suas filhas, seus amigos. Todo mundo junto pra te apoiar durante, mas principalmente no processo, nos meses e dias até lá. (Todos com Renato!) Temos ainda 8 meses.

Penso nelas, nos meus amigos, nos companheiros de treino, na minha equipe, falo bastante deles…

– Sem eles eu não conseguiria, nem querer, quereria! O apoio, a segurança. Tenho um time muito coeso, presente. Apresento a equipe que me acompanhará, o capitão e toda a tripulação que comandará comigo esse trem maluco que resolvi dirigir.

Eles ressaltam eixos importantes e repetem palavras: Kokua, Ohana, Aloha.

Solidariedade, família e amor. Penso ainda em companheirismo, autoconhecimento, superação, garra. E me vejo sendo isso, cumprindo esses eixos, de Ubatuba à Barra da Tijuca, nadando os 10 quilômetros mais fundos da minha vida, pedalando os 421 com toda minha dedicação e amor e correndo os 84,4 munido de enorme superação e autoconhecimento. Eu quero, e eu posso, agora, acabo de saber que posso!

Lembro da minha companheira me contando que no latim “ultra” quer dizer “para além de”, e, intuitivamente, me vejo nesse lugar, experimentando a posição de estar aqui podendo estar além.

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